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Um segundo de representação: a diversidade limitada do anúncio da marca O Boticário

28 de abril de 2021

A presença de minorias em campanhas publicitárias normalmente é vista como positiva aos olhos progressistas, entretanto, devemos problematizar a qualidade dessa representação. Por exemplo: por que utilizar um casal lésbico em um anúncio sem o intuito de dar o mesmo nível de protagonismo dos casais héteros que fazem parte da mesma narrativa? Para tentar responder a tal questionamento, convido a lançarmos nosso olhar para um vídeo publicitário da empresa O Boticário, veiculado no ano de 2019, em comemoração ao Dia dos Namorados. O anúncio tem início com uma jovem dizendo: “Hoje em dia existem vários tipos de relacionamentos...”. Nas cenas seguintes, ela aparece beijando a boca de três pessoas diferentes, dois homens e uma mulher, em locais e situações distintas, e chamando-os para irem à sua casa à noite. Na cena final, nos é apresentado os três convidados no portão da casa segurando presentes da marca e visivelmente confusos. Em seguida, o portão é aberto e é revelado que trigêmeas idênticas moram no local e cada uma convidou o seu respectivo par para sua casa. Posteriormente, a atmosfera muda e podemos ver filmagens glamourosas dos dois casais héteros trocando carícias e o casal lésbico apenas trocando presentes.

A problematização que proponho dessa peça, portanto, é pautada no uso da representação de uma relação homossexual por apenas alguns segundos na campanha (o beijo lésbico durante a primeira parte) e, a seguir, na segunda parte, no quase apagamento total do casal, através de efeitos e ângulos que cortam a participação da namorada de uma das trigêmeas. Desse modo, podemos perceber uma certa invisibilização do casal lésbico no anúncio, que dialoga com o conceito de diversitywashing que, de acordo com as pesquisadoras Fernanda Carrera e Chalini Torquato, trata-se do uso de minorias em campanhas publicitárias de forma figurativa.

Uma das características do diversitywashing é a atribuição de neutralidade, que se dá no uso de corpos minoritários em meio a uma classe social privilegiada, como no caso do anúncio citado, em que temos um casal lésbico em meio a dois casais héteros. Essa forma de representação acaba reforçando e atribuindo a ideia de normalidade ao casal hétero e de certa estranheza e “anormalidade” ao casal lésbico, que acaba sendo utilizado apenas como artifício para chamar atenção dos consumidores expostos à peça publicitária.

Esse anúncio da marca O Boticário é também um bom exemplo para discutirmos a diferença entre representação e representatividade. Muitas vezes, nós utilizamos o termo representatividade de forma errônea quando avaliamos a aparição de corpos pertencentes a grupos minoritários em filmes, séries, jornais, revistas, novelas, anúncios etc. Como comentam Deh Bastos e Paula Batista, autoras do blog Criando Criança Pretas, a simples presença desses corpos em campanhas publicitárias, por exemplo, apenas se caracterizaria como representação. A ideia de representatividade vai muito além, pois diz respeito também à presença de indivíduos pertencentes a grupos sociais contra-hegemônicos em espaços de decisão. O que os daria oportunidades de gerar mudanças e de abrir espaços para que outras pessoas tenham suas vozes ouvidas, possibilitando, por consequência, influenciar mudanças nas estruturas de poder por dentro.

Nesse raciocínio, não podemos dizer que O Boticário trouxe representatividade para sua campanha, uma vez que um beijo entre duas pessoas do mesmo gênero apenas se tratou da representação de uma forma de afeto do grupo LGBTQIA+. Não temos como saber se, de fato, alguma pessoa que faz parte desse grupo minoritário sequer participou do desenvolvimento dessa campanha, lucrou com ela, ou teve sua visão artística acionada.

A cobrança por mais representação e representatividade dentro de grandes empresas, como a O Boticário, é pauta de lutas constantes de diversos movimentos sociais (como por exemplo movimento negro, feminista, corpo livre e LGBTQIA+). Então, muito além de exigir representação nas telas, as minorias sociais lutam para ocupar espaços e posições de decisão dentro dessas empresas. Afinal, é bem provável que pessoas pertencentes a um grupo minoritário, no processo criativo de uma publicidade, levem em conta aspectos diferentes daqueles considerados por pessoas pertencentes a grupos privilegiados.

Logo, podemos refletir que, quanto mais representatividade tivermos, maior e de melhor qualidade serão as representações nos anúncios de grandes marcas como a O Boticário. E, quanto mais estivermos atentos ao uso de diversidade limitada na publicidade, mais estaremos contribuindo para a construção de uma sociedade mais justa e confortável para todas as pessoas, independente de sua sexualidade, gênero, cor, etnia ou condição física.


Texto escrito por Arthur Germano Nolasco Rucks, graduando em Comunicação Social pela UFMT, integrante do OPSlab.

Leia também: Primeira modelo plus size da Victoria’s Secret: mais um caso de diversitywashing, mais uma análise sobre a prática do diversitywashing.


Referências:

BATISTA, Paula; SANTOS, Deh. Representatividade x Representação: entenda a diferença e

a importância. 2019. Disponível em: https://push.com.br/post/representatividade-x-representacao-entenda-a-diferenca-e-a-importancia#:~:text=Claro%20que%20ocupar%20todos%20os,a%20decis%C3%A3o%2C%20isso%20%C3%A9%20representatividade. Acesso em: 28 nov. 2020.

CARRERA, Fernanda; TORQUATO, Chalini. Diversitywashing: as marcas e suas (in)coerências expressivas. Comun. Mídia Consumo, São Paulo, v. 17, n. 48, p. 84-107, abr. 2020. Disponível em: http://revistacmc.espm.br/index.php/revistacmc/article/view/2069/pdf. Acesso em: 28 nov. 2020.

Dia dos Namorados | O Boticário. São Paulo: O Boticário, 2019. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=kuzHC6_LRIg. Acesso em: 28 nov. 2020.