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Entre curtidas e compartilhamentos de “fofuras”: precisamos falar sobre exposição de crianças nas redes sociais

11 de novembro de 2021

Na sociedade atual, marcada pelo imperativo da conectividade, têm sido crescentes os usos de tecnologias digitais por crianças bem como a hiperexposição de seus cotidianos em plataformas de redes sociais. É bem verdade que a internet se apresenta como importante espaço para o compartilhamento de experiências e aprendizados entre o público infantil. No entanto, também se tornou um ambiente em que suas imagens circulam exaustivamente, por vezes sem o seu consentimento. Cada vez mais, perfis de crianças nas redes sociais digitais possibilitam o acompanhamento de seu crescimento quase que em tempo real, ganham visibilidade, engajam milhares de pessoas e atraem marcas anunciantes.

É o que acontece, por exemplo, com a bebê Alice. Se você acessa redes sociais digitais, provavelmente, já deve ter se deparado com algum conteúdo protagonizado por ela. Com apenas dois anos de idade, a pequena menina “que não vê TV nem celular” viralizou na internet devido a vídeos publicados por sua mãe Morgana Secco, em que aparece repetindo “palavras difíceis” com desenvoltura.

Em seus perfis de redes sociais, Morgana expõe recortes do dia a dia da filha para uma imensa audiência. No TikTok e no Instagram, respectivamente, acumula quase 4 e 3 milhões de seguidores, ávidos por darem curtidas e compartilhamentos nas “fofurices” produzidas por Alice.

Shareting - termo em inglês derivado da junção de share (compartilhar) e pareting (parentalidade) - é o nome dessa prática das famílias divulgarem conteúdo sobre/com seus filhos em plataformas de internet. Estudo realizado em 2021 pela Avast revela que 33% dos pais que moram no Brasil já publicaram uma foto do seu filho menor de idade, sem consultar sua autorização e sem nenhuma restrição que impedisse a identificação da criança. A pesquisa mostra também que 60% dos pais entrevistados reconhecem o risco de as imagens ultrapassarem o ciclo de amigos e familiares, alcançando pessoas estranhas.

O fenômeno do shareting se complexifica quando os conteúdos das crianças compartilhados pelos pais fazem tanto sucesso que passam a ter fins publicitários. No caso da bebê Alice, a menina já participou de vídeos publicitários de marcas como Ipiranga, Amazon e Itaú. O anúncio do Itaú, além da internet, foi também veiculado na televisão, ampliando a popularidade e exposição de Alice.

O banco percebeu a oportunidade de se aproveitar da “interação, já consagrada nas redes sociais entre a pequena Alice e sua mãe” para direcionar engajamento para sua marca. Uma estratégia de publicização que teve êxito, posto que, somente no canal oficial do Itaú no YouTube, o vídeo foi visualizado mais de 8 milhões de vezes!

Mas, e para a criança Alice, quais as implicações dessa hiperexposição também na publicidade, sem seu consentimento? Quais os limites éticos do uso de imagens dos mais jovens como estratégia para persuasão ao consumo de marcas? Afinal, como garantir o direito da criança de ser representada, se expressar, participar dos ambientes digitais, sem renunciar ao direito à proteção e à privacidade?

Entre curtidas e compartilhamentos de “fofuras” protagonizadas por crianças, é fundamental a sensibilização da sociedade como um todo sobre os desafios da infância hiperconectada, promovendo-se reflexões acerca das oportunidades e dos riscos com as quais ela lida no ambiente digital.

Em relação a pais e responsáveis, é importante considerar que a internet é um espaço público, que precisa ser utilizado com responsabilidade e respeito aos direitos das crianças. Como prevê o Estatuto da Criança e do Adolescente, é necessário zelar pela proteção de sua privacidade e dignidade.

Em relação aos publicitários e às marcas anunciantes, para além de lembrar que a comunicação mercadológica dirigida a crianças é abusiva e ilegal em nosso país, é preciso ter ciência sobre a responsabilidade da publicidade ao fazer uso de representações de crianças. Como destaca o Manifesto publicado pela RECRIA (Rede de Pesquisa em Comunicação, Infâncias e Adolescências), deve-se evitar qualquer tipo de exploração desse público e ultrapassar a “visão limitante de crianças como apenas mais um target de ações mercadológicas multifacetadas”.

E aí? Vamos juntos construir uma sociedade implicada em priorizar o melhor interesse da criança, zelando por seu desenvolvimento pleno e saudável tanto nas redes sociais digitais como fora delas?


Texto escrito por Pâmela Craveiro, doutora em Comunicação Social pela UVIGO, coordenadora do OPSlab.

Leia também: Adoção na Passarela: o limite tênue entre visibilidade e exposição infantil, mais uma análise ligada às questões da exposição infantil.


Referências:

CHILDFUNDBRASIL. ECA: Conheça o Estatuto da Criança e do Adolescente. Disponível em: https://www.childfundbrasil.org.br/blog/eca-estatuto-da-crianca-e-adolescente/?utm_source=google&utm_medium=cpc&utm_campaign=blogposts&utm_term=eca&gclid=CjwKCAjwk6-LBhBZEiwAOUUDp_6hYLBM31PIEIgmuSWQVD9nE8bfstGoo6-3U6-lrWORMgu607MIpxoC_-oQAvD_BwE.

CRIATIVOS, Publicitários. Itaú convida bebê Alice para estrelar nova campanha. Disponível em: https://www.publicitarioscriativos.com/itau-convida-bebe-alice-para-estrelar-nova-campanha/.

MPPR. Resolução CONANDA nº 163/2014, de 13 de março de 2014. 04 abr 2014. Disponível em: https://crianca.mppr.mp.br/pagina-1635.html.

REDERECRIA. Manifesto pelo respeito às crianças e adolescentes na mídia e na pesquisa em comunicação. 02 set. 2021. Disponível em: https://rederecria.com.br/nosso-manifesto.

TECMUNDO. Sharenting: brasileiros expõem filhos na web sem entender riscos. 19 abr. 2020. Disponível em: https://www.tecmundo.com.br/seguranca/152219-sharenting-brasileiros-expoem-filhos-web-entender-riscos.htm.

TERRA. 'Não vê TV nem celular': a menina de 2 anos que viralizou falando palavras difíceis. 13 jul. 2021. Disponível em: https://www.terra.com.br/noticias/educacao/nao-ve-tv-nem-celular-a-menina-de-2-anos-que-viralizou-falando-palavras-dificeis,b52d532dd89a4c491a1c49c5103001ddz8uo1gc4.html.