Fique por dentro das nossas análises!

Adoção na Passarela: o limite tênue entre visibilidade e exposição

de crianças e adolescentes aptos à adoção

08 de junho de 2019

Recentemente o evento denominado “Adoção na Passarela” fez com que os olhos de todo o país se voltassem para um shopping center de Cuiabá. O acontecimento foi autorizado pela juíza de direito da 1ª Vara Especializada da Infância e Juventude e promovido pela Associação Mato-grossense de Pesquisa e Apoio à Adoção (AMPARA), em parceria com a Comissão de Infância e Juventude (CIJ) da Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional Mato Grosso (OAB-MT). Realizado pela 1ª vez em 2016, esse ano reuniu cerca de 18 crianças e adolescentes de 4 a 17 anos aptos à adoção em um grande desfile aberto ao público e à mídia. Segundo os organizadores, o objetivo era dar visibilidade e estimular a adoção tardia[1].

Apesar da boa intenção, a ação fez com que a indignação da comunidade surgisse tão rápida quanto as primeiras manchetes jornalísticas, repercutindo negativamente nas mídias sociais. Milhares de tweets e posts de pessoas de diversas regiões do Brasil problematizaram a Adoção na Passarela, alguns deles associaram o evento a antigas feiras de escravos, em que os senhores conferiam os dentes e corpos dos negros antes de negociar seus lances. Além do mais, vale lembrar que, historicamente, o desfile é intrinsecamente ligado às relações comerciais, tanto é que o intuito desse tipo de evento é, em sua maioria, expor produtos mercadológicos a possíveis compradores e isso também não passou despercebido pelos internautas. A reação do público no meio online influenciou os telejornais a abordarem o tema, que se tornou pauta de programas de alcance nacional, tais como Fantástico e Encontro com Fátima Bernardes, ambos da TV Globo.

Na passarela, nos stories do público presente, na capa da manchete jornalística: a exposição de crianças e adolescentes. Afinal, até que ponto essa superexposição pode ser justificada pela busca da visibilidade para a causa da adoção? Até que ponto as nossas intenções podem ser usadas como fatores atenuantes para nossas ações? O evento Adoção na Passarela acabou evidenciando a linha tênue entre visibilidade e exposição de crianças e adolescentes aptos à adoção.

Diante da ampla repercussão do caso, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) repudiou esse tipo de iniciativa e ressaltou que “o Brasil possui uma rigorosa legislação na área de adoção, oferecendo um marco jurídico baseado no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) que prioriza a proteção, a confidencialidade e a privacidade dentro dos processos envolvidos para a restituição do direito a viver em família.” De fato, em seu artigo 17, o ECA garante a preservação da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a sua preservação de imagem e de identidade. Ademais, o artigo 18 do Estatuto estabelece que é dever de toda a sociedade zelar pela proteção da criança e do adolescente, preservando-os de situações vexatórias ou constrangedoras. Para a Associação Juízes para a Democracia, a ação Adoção na Passarela não só violou o ECA, “como expôs de forma duvidosa, para não dizer desumana, às graves situações de extrema vulnerabilidade emocional e social a que estão expostos”.

Mas, se a intenção do evento era a melhor possível, isso tudo não importa, correto? Na verdade, importa sim, pois o fim não justificaria os meios. É cada vez mais necessário que nós, enquanto sociedade, adotemos uma posição crítica e reflexiva sobre os impactos das nossas atitudes para que as boas intenções resultem também em ações positivas.

Afinal, será que não haveria outras possibilidades de dar visibilidade à importante causa da adoção sem violar as imagens, bem como a integridade física e moral de crianças e adolescentes. O que você acha? Conta para gente alguma outra ação e/ou campanha que poderia ser feita?


Texto escrito por Andrielly Sene, graduanda em Comunicação Social pela UFMT, integrante do OPSlab.


Referências:

BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei 8.069/90, de 13 de julho de 1990.

'Passarela da adoção' com crianças e adolescentes causa polêmica em MT: https://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,evento-com-passarela-de-adocao-em-mt-causa-polemica,70002840016

‘Decidi adotar minha filha após desfilarmos na passarela’: as mães que adotaram jovens após evento polêmico: https://bbc.in/2EFBdfX

UNICEF repudia evento Adoção na Passarela realizado no Mato Grosso: https://bit.ly/30PNo3i

Desfile com crianças à espera de adoção causa polêmica: https://glo.bo/2K7CAY6

Nota pública da AJD em repúdio ao evento denominado "Adoção na Passarela": encurtador.com.br/hpxGL

[1] Ver nota de esclarecimento conjunta da AMPARA e da OAB-MT em: https://www.oabmt.org.br/noticia/15089/nota-de-esclarecimento